A Cruz: símbolo pagão e cristão
"Nela se juntam o céu e a terra; nela se confundem o tempo e o espaço. Ela é o cordão umbilical, nunca cortado, do cosmos ligado ao centro original" - Jean Chevalier, Alain Gheerbrant.


De todas as tipologias da cruz existentes no mundo - a celta, a ankh, a de Malta, etc -, a cruz cruciforme é aquela que se encara imediatamente como o símbolo por excelência do Cristianismo: símbolo do Salvador, do martírio e da ressurreição. A planta das Igrejas cristãs e o crucifixo são delineados à imagem da cruz: em forma de “T”. Terá, todavia, este símbolo nascido com o cristianismo?
O conceito de “cruz” provém do latim “crux” que, por sua vez, resultou da tradução da palavra grega “stauros”, referida no Novo Testamento (originalmente redigido em grego) como o instrumento do martírio de Cristo. Ora, “stauros” refere-se a uma estaca de madeira e não necessariamente a uma cruz, razão pela qual diversos autores, que se dedicaram ao estudo da história da cruz, a consideram um símbolo pagão e não cristão1.
Efetivamente, a cruz surgiu muitos séculos antes do Cristianismo como símbolo da vida, sendo um dos atributos de diversos deuses pagãos em diferentes religiões espalhadas pelo continente africano, asiático, americano e europeu. A título de exemplo, o símbolo da cruz surge documentado no Antigo Egipto, na China, em Cnossos e em Creta, onde se encontrou uma cruz de mármore datada do século XV a.C..
Se se omitir a conotação cristã do símbolo da cruz, este inclui-se no grupo dos quatro símbolos fundamentais, juntamente com o quadrado, o centro e o círculo. À semelhança do quadrado, simboliza a terra e partilha da simbologia do número quatro. A cruz, dirigida para os quatro pontos cardeais, é a base de todos os símbolos de orientação, possuindo também um valor ascensional: nas lendas orientais é o ponto ou a escada pela qual o Homem chega a Deus. Também no Cristianismo a cruz tem esse valor, uma vez que simboliza, simultaneamente, a morte e a ressurreição de Cristo: o cruzamento entre o eixo horizontal e o vertical representa a interseção entre o divino e o humano.
Na Roma Antiga, a cruz foi um instrumento de vergonha e punição de criminosos e escravos, castigo que remonta aos assírios e babilónios e se difundiu pelos países do Mediterrâneo oriental, graças a Alexandre o Grande. Contudo, as vestais (sacerdotisas que prestavam culto à deusa Vesta, em Roma) usavam um colar com a cruz tau (em forma de “T”), à semelhança das freiras católicas. Um dos atributos da deusa do amor fenícia, Astarte ou Asthoreth - e do deus do sol, Baal - era também a cruz, símbolo utilizado no culto do deus persa da sabedoria, do sol e da guerra: Mitra.
Os reis assírios-caldeus (como Asurbanípal e Sansirauman) usavam jóias em forma de cruz, como podemos verificar pelas suas estátuas no Bristish Museum, integradas nos monumentos de Ninive, associados à adoração do deus-sol Tamuz. Também se encontrou, entre as relíquias da antiga Babilónia e Assíria, a cruz de Malta e a roda do sol, que eram símbolos de poder usados pelos monarcas e que deveriam ser venerados, pois demonstravam a sua posição imediatamente inferior a Tamuz e superior à restante humanidade. A estrela e a cruz de Malta correspondiam aos atributos do deus do céu babilónio Anu, símbolo visível na estela do rei Shamshi-Adad V, encontrada no nordeste do Iraque e datada de cerca de 824-811 a.C.:


No Egipto antigo, o símbolo da cruz manifesta-se sob diferentes formas na escrita hieroglífica: a de Malta, cujos braços, por vezes, eram formados por serpentes, representa os quatro elementos; quando constituída por dois ou quatro cetros com um círculo no ponto de interseção indica o poder divino, surgindo como símbolo do espírito eterno em sarcófagos e túmulos. A mais comum e denominada “Chave do Nilo” era, todavia, a cruz ankh ou ansata.
Símbolo da “vida por chegar”, emblema da vida divina e da eternidade, a cruz ankh era um dos atributos iconográficos do deus Ra. É frequentemente confundida com o nó de Ísis (tyet), não tendo, porém, um significado semelhante. O círculo sobre a cruz correspondia à imagem perfeita da eternidade; já a cruz representava o estado de transe do iniciado ou o seu estado de morto; em alguns templos, o iniciado era deitado numa cama em forma de cruz. A cruz ansata era, também, desenhada na fronte dos faraós e dos iniciados, a fim de lhes conferir a visão da eternidade.



A partir do Egipto, a imagem da cruz ansata difundiu-se por outras partes do continente africano. Na Etiópia, entre outros rituais religiosos, os nativos mergulham a cruz no rio; as mulheres do povo cabila (na Argélia) tatuam uma cruz entre os olhos; em Wanyamwizi, decoram-se as paredes com cruzes e ornamentos que se assemelham a serpentes. Infelizmente, desconhece-se o significado original destas tradições.
Sabe-se, porém, que na arte africana a cruz tem um sentido cósmico, significando a totalidade do cosmos ao indicar os quatro pontos cardeais; quando apresenta um círculo em cada extremidade, simboliza o sol e o seu percurso; como encruzilhada, exprime os caminhos da vida e da morte. Os povos Bantos do Cassai - do Congo, Lulua e Baluba - organizam a sua perceção do mundo segundo a associação entre cruz e espiral: o eixo vertical da cruz une a terra e o céu, morada da divindade suprema que se encontra, ela própria, no centro da cruz e em cujos braços habitam os quatro génios superiores, seus assessores. O eixo horizontal liga o mundo dos génios bons (a Este) ao dos génios maus (a Oeste). O centro desta cruz primordial é a encruzilhada da via láctea, onde as almas dos mortos, depois de passarem a ponte, são julgadas e conduzidas pela direita ou pela esquerda (Oeste ou Este). Génios, espíritos e alma evoluem em espiral, de um para outro desses quatro planos primordiais. Entre estas mesmas populações, a cruz tatuada, gravada ou forjada simboliza, simultaneamente, os pontos cardeais e os quatro caminhos do universo que conduzem à morada dos génios (céu ou Norte), à morada dos homens (em baixo), à morada das almas boas (Este) e à morada das almas más (Oeste).
Na Índia, a cruz simboliza os quatro elementos, considerados pelos hindus como eternos e parte componente de todo o cosmos: deles nasceram os deuses e a alma dos homens. Daí a sua crença de que nada será aniquilado, apenas transfigurado: tanto as almas, através da transmigração, como a matéria através da transmutação. Shiva, deus da destruição e da regeneração, divindade que regula os elementos, é representado com uma cruz ao peito, que, na Índia, é o símbolo mais antigo da majestade. Os deuses Vishnu, Brahma e Tvashta também ostentam esse atributo; quando na mão de Vishnu, significa o poder de entrar no céu e na terra e de destronar o mal, bem como o seu governo eterno e sempre vigilante do mundo.



Na mitologia mexicana, Xiuhtecutli, o deus fogo - que se senta no centro do universo - detém o símbolo da cruz. Na tribo Apache, do Arizona e Novo México, os curandeiros desenhavam a cruz de Malta nas suas vestes para se tornarem invisíveis. Já a cruz mexicana de Quetzalcoatl - denominação asteca para “serpente com penas” - assemelha-se muito à cruz de Malta.
Para a tribo Hopi, a cruz de Malta detinha um papel central nas profecias sobre o final dos tempos. No momento predeterminado pelo criador, uma figura chamada Pahana iria retornar à terra dos Índios Hopi, envergando uma capa vermelha. Pahana provaria a sua identidade através de um objeto, que se revelaria constituir parte da tábua guardada pela tribo, desde os tempos primordiais; de igual forma, exibiria uma cruz suástica como símbolo dos quatro pontos cardeais. Apresentar-se-ia acompanhado por dois ajudantes: o primeiro traria uma cruz de Malta, ostentando no eixo horizontal linhas representativas do sangue menstrual; o segundo exibiria o símbolo do sol. As forças combinadas destes três símbolos iriam agitar e purificar o mundo. Para a tribo Hopi, a cruz de Malta simboliza a fertilidade e o sangue menstrual.
Uma outra questão interessante consiste no facto do Índio da América, tal como o europeu, considerar a cruz romana como o símbolo da árvore da vida. Esta surge representada de forma simples ou com as extremidades ramificadas/foliáceas, como as célebres cruzes de Palenque o ilustram. No códice Ferjervary-Mayer cada um dos pontos cardeais da terra é representado por uma árvore em forma de cruz, com um pássaro no topo. Em alguns códices, a árvore da vida é representada por uma cruz de lorena com sete flores no eixo horizontal, simbolizando estas a divindade agrária; noutros casos, o septenário divino é representado por seis folhas e o pássaro solar no centro do céu.
Por outro lado, a cruz celta conjuga o simbolismo do círculo com a cruz. A correspondência quaternária ilustra a repartição dos quatro elementos (ar, terra, fogo e água), que coincide com a divisão da Irlanda em quatro províncias: no centro localiza-se a quinta região, constituída por partes das restantes. O centro, no qual não existe nem tempo nem mudança, é um lugar de passagem ou de comunicação simbólica entre este mundo e o divino; é um ônfalo, um ponto de rutura no tempo e no espaço. Tradicionalmente, os druidas celtas selecionavam uma árvore que considerassem bela como emblema da divindade que adoravam e, cortando os ramos laterais, juntavam dois dos mais largos ao tronco central. Representavam, dessa forma, a divindade sob a forma de uma cruz e, na casca do tronco da árvore, inscreviam a palavra “thau”.
De todas as tipologias de cruz existentes, a suástica é aquela que maior carga negativa adquiriu, devido ao movimento nazi no século XX. No entanto, trata-se de um símbolo místico milenar, presente em diferentes culturas: segundo Sir George Birdwood, a sua linha direita simboliza o princípio masculino (o sol, na sua jornada diária de Este para Oeste, luz e vida) e a linha esquerda, o princípio feminino (o sol em Hades, na sua jornada de Oeste para Este, escuridão e morte). Inscrevia-se o símbolo sagrado da suástica nos túmulos do Egipto e nas catacumbas de Roma; na China, simboliza a eternidade e, na Índia, é usada pelas mulheres hindus como um amuleto de sorte.
A cruz invertida trata-se de mais um símbolo carregado de conotações negativas: é visível em filmes de terror, é associada a e utilizada em missas negras - é o símbolo satânico por excelência. Inicialmente, porém, consistiu no símbolo do Apóstolo S. Pedro, morto na cruz invertida, por se considerar indigno de ser martirizado como Cristo. Paralelamente, a imagem da cruz invertida sempre teve conotações “anti” Cristianismo, mas não necessariamente satânicas: a título de exemplo, na Noruega, durante os anos 90, com o surgimento do estilo de música black metal, a cruz invertida foi utilizada como expressão do desejo de um retorno às raízes pagãs do país, simbolizando a negação do Cristianismo. Posteriormente, com a demonização da utilização desse símbolo por parte dos media, os músicos passaram a dotar a cruz invertida desse significado, como forma de atrair a atenção do público.
O recuo às origens do símbolo da cruz demonstra a fusão entre elementos pagãos e cristãos, assim como a interligação entre diferentes religiões. Torna-se óbvia a existência de uma repetição de ideias e de crenças, que extravasam o limite terrestre dos continentes: a partilha da crença no paraíso e no inferno (existente no continente Africano antes do período da colonização e do cristianismo), do símbolo da árvore da vida, da cruz presente em túmulos, entre outras que se poderiam aqui enumerar.
Contrariamente ao que muitos católicos dirão, o cristianismo não foi a verdadeira e primordial religião (essa noção é errada, inclusivamente); pelo contrário, absorveu diversas influências de outras religiões. O símbolo da cruz, na sua metamorfose em diferentes formas, espelha a intricada riqueza da própria história das religiões.
O símbolo por excelência do Cristianismo deveria ser aquele que inicialmente se usava: o Monograma de Cristo, também conhecido por Chi-Rho.
Subscreve gratuitamente para ler mais artigos como este, a Láquesis Magazine agradece!
Muito interessante, como de costume. A simbologia da Cruz remete para o âmago da situação do Homem no mundo: algures, entre o Sagrado e o Profano, ainda que nos queiram inculcar, à força, que estamos atolados no profano e de lá não saímos porque não há mais nada.